domingo, 18 de maio de 2014

Feira no sertão (Cordel)

este cordel também já faz um bom tempo que escrevi, porém relendo-o achei atual e por isso lá vai o bicho...ele também é um desafio a vida de hoje, com toda essa correria, pois parece que não temos mais tempo pra nada, portanto se tiver com pressa, se acalme e respire fundo pra ler.



Feira no sertão

Quando visito uma feira
Pras bandas do interior
Deleito-me com o sabor
De uma coisa corriqueira
Tem quem diga: isso é besteira
Eu respeito a opinião
Mas minha convicção
Difere, quero dizer:
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

A feira é o local
Que me deixa inspirado
Fica ao lado do mercado
Isso em condição normal
Percebo no pessoal
Bastante concentração
É grande a disposição
De quem vem para vender
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

É um dia diferente
Com bastante movimento
Vê-se em todo momento
Gente pra trás e pra frente
Dos sítios vem toda gente
Vem a pé, de caminhão,
Em jumento, em alazão,
Rural, jeep ou DKV
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Começa de madrugada
Nas bancas e no mercado
Logo cedo tem picado,
Tem galinha e tem buchada,
Tem caldo e tem rabada
Tem arroz e tem feijão,
Caçarola e caldeirão
Sempre no fogo a ferver
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

O povo chega bem cedo
Quando a barra vai quebrando
Aquela brisa soprando
Na encosta do lajedo
O orvalho no arvoredo
E o cheiro da criação
No horizonte um carão
Vai voando sem saber
Que é bonito de se ver
Uma feira no sertão

Na feira se tem de tudo
Tem “sulanca” e tem fazenda
Cocha de chenil, de renda,
Calça jeans e de veludo,
Peiteira, que é escudo,
Pra se pegar barbatão
Tem gibeira, tem gibão,
Tem bisaco pra vender
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem cangaia, arreio e sela,
Chapéu de couro e de palha,
Tem botina, tem “sandalha”,
Lamparina e suvela,
De barro se tem panela,
Boneco e pote no chão,
Também se vê matulão,
Ligueira pra se bater,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem foice, facão e faca,
Espingarda e machado,
Tem enxada, tem arado,
Tem bode, jumento e vaca,
Tem couro de jararaca,
Para fazer cinturão,
Tem pavio, tem lampião,
Agulha, para coser,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem enxó, pua e martelo,
Tem serra e tem serrote,
Tem caixão e tem caixote,
tem caçuá, tem chinelo.
Tem menino bem “magrelo”
Vendo fazer algodão
Pedindo algum tostão
Para comprar e comer
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem prego e baladeira,
Tem parafuso e cano,
Tem a boneca de pano,
Tem bilro para a rendeira,
Tesoura pra costureira,
Naftalina e botão,
Tem linha de algodão,
Tem chita pra se escolher,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem rapaz fazendo aceno
Pra moça que vai passando,
Tem cantador versejando
Verso grande e pequeno,
Tem lata de “queroseno”
Transformada em caminhão,
Pá de zinco e até fogão
Que para a mulher cozer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Um homem vende alfenim
Andando com um tabuleiro
No mercado um vaqueiro
Se levanta e diz assim:
-Bote cachaça pra mim...
Esmurrando o balcão
Procurando confusão
Logo logo vai morrer...
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem umbu e tem cajá,
Tem melão e melancia,
Tem penico, tem bacia,
E tem também aguidá,
Tem a raspa do juá,
Pra fazer escovação
Tem arame e tem bordão
Para “fachina” fazer
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem rapadura e farinha,
Tem tareco e mariola,
Tem disco de radiola,
Tem peru, porco e galinha,
Tem grelha e tem quartinha,
Tem cordel em um cordão,
Milho, arroz e feijão,
E charque pra se comer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem dupla de embolador
Fazendo o povo sorrir,
Tem verduras a cair
Nos pés d’ algum comprador,
Tem rede, tem armador,
Tem estronca e tem mourão,
Tem carrapeta e pião,
Tem tarrafa pode crer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem tilápia e tem coró,
Tem curimatã ovada,
Tem traíra bem cevada,
Tucunaré num cipó,
Tem peba e tem mocó,
Tejo, jacu e canção,
Patativa e azulão
Que cantam até morrer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem também fumo de rolo,
Tem tabaco, que é rapé,
Tem cachimbo, tem café,
Tem tapioca e bolo,
Tem batata de rebolo,
Macaxeira e fruta pão,
Tem cabaço e tem pilão,
Tem moinho pra moer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem rabichola e chocalho,
Arupema e rói rói,
Tem menino com dói dói,
Queijo de manteiga e coalho,
Tem anzol e linha “nalho”,
Tem o ferro a carvão,
Tem cabresto e surrão,
Tem azeite de dendê
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem Chico, Tonico e Zé,
Pedro, João e Severino
Tem Tente e Ambrosino,
Sebastião e Mané
Maria de Nazaré,
Das dores, Da Conceição,
Foto de Frei Damião,
E ponche pra se beber,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem mala e tem maleta,
Tem camisa de tergal,
Tem a corda de sisal,
Chumbo, pólvora e espoleta,
Cartucheira e marreta,
Tem música de Gonzagão,
Retrato de Lampião,
Cocho de porco comer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem milonga e maracá,
Feijão verde e jerimum,
Tem craúna e tem anum,
Mel, paçoca e fubá,
Agulha de palombá,
Tem gaiola e “alçaprão”,
Tem roupa de gurgurão,
Tacaca sempre a feder,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem marreca e tem nambu,
Caldo de cana e pastel,
Tem “retróis” ou carretel,
Galinha d’ água e timbu,
Colorau de urucu,
Pimenta e pimentão,
Tem beiju, bolacha e pão,
Desavença e mal querer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem vendedor de boné,
Imagem do Padre “Ciço”,
Tem cuscuz e tem chouriço,
Gente caindo em imbé,
Tem a cuia do cuité,
Tem caroço de algodão,
Tem cesto e carro de mão,
Tem gente sem entender
Que é bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem lanterna que já vem
Com foquito e elemento,
Tem cambito pra jumento,
Tem ração no armazém,
Tem lembranças do vintém,
E também tem do tostão,
Das moedas de dobrão
Não se deve esquecer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem camiseta de malha,
Mocotó de porco e gado,
Tem até pé de veado,
Tem a esteira de palha,
Pra barbeiro tem navalha,
Pra carpinteiro: formão,
Pra cachaceiro: limão
Pra misturar e beber,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem até João redondo,
E boneco de madeira
Falando no “mei” da feira
Diversos causos expondo
Tem o poeta compondo
Versos com o coração,
Usando a imaginação
Pra depois o povo ler,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem cego pedindo esmola,
Tem Carolina e consolo,
Tem freguês que não é tolo
Pois aprendeu na escola,
Pra sapateiro tem cola,
Pra menino ruim: carão,
Tem a fiscalização
Que pode até prender,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem cadeado e corrente,
Pra se botar na cancela,
Tem erva doce e canela,
Cachaça que é aguardente,
Pra tirar piolho: pente,
Pra tomar banho: sabão,
Óleo de côco e carvão
E até mulher do prazer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Sempre tem um sanfoneiro,
E quero ver não ter ovo,
Numa “rudia” de povo
Deve ter um zabumbeiro
Um "triango" e um pandeiro
E um cabra metendo a mão,
É aquela animação
Só se para pra beber,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Sempre tem um paralítico
Que lá chamam “alejado”
As vezes se vê cajado,
Tem menino que é raquítico,
Encontra-se até político,
Só em tempo de eleição
Ele chega estende a mão
Querendo aparecer,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem folha de caraúba
Tem xerém e diadema,
Tem campina e sariema,
Tem cera de carnaúba,
Tem menino com piúba,
Que pegou lá pelo chão
Fumando atrás do balcão
Que é pra ninguém perceber,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Velho contando estórias
Também na feira se encontra,
Tem menino que apronta
E apanha de palmatória,
Caçador conta vitória,
Jogador que é campeão,
Retratista de plantão
E gente a se benzer
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem a banca de importado
Que não vale um cibazol,
Carro que acende o farol
Mas quando é desmantelado
É chiclete mastigado,
Ninguém lhe dá atenção,
Tem CD, televisão
E até “oclus” HB,
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

É tudo artificial
É do Paraguai que vem,
Calculadora se tem
Mas ninguém dá um real,
Tem relógio digital
Que não tem comparação
Ao de bolso com cordão
Orient ou cartiê
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Se a memória não me falha
Vou lembrar do fim da feira
Todo o povo de carreira
Mas ninguém se atrapalha
Tem carne verde na palha
Pendurada pela mão,
Em cima do caminhão
O povo a se espremer
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem homem puxando fogo
Em busca do cabaré
Tem feirante que até
Deixa a banca e vai pro jogo,
Têm outros que fazem rogo
Pedindo a Frei Damião
Que continue a missão
De sempre lhe proteger
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Tem “bebos” pelas calçadas
Com o cachorro de lado,
Tem vendedor enfadado,
Muita gente nas estradas,
Já tem bancas desmontadas
Espalhadas pelo chão
Tem chafurdo e confusão,
Na hora do entardecer
É bonito de se ver
Uma feira no sertão

Quando acaba o movimento
Vai tudo normalizando
Feirantes se retirando
É esse o pior momento
O retorno ao sofrimento
De uma eterna prisão
A seca sem “solução”
Alimentando o “poder”
Mesmo assim gosto de ver
Uma feira no sertão

Aqueles rostos sofridos
Que encontro numa feira
São como o pó da poeira
Fragmentos esquecidos
Que vagam sempre perdidos
Em meio à imensidão
Não veem a dimensão
Do que está a acontecer
Mesmo assim gosto de ver
Uma feira no sertão

Não entendem que a cultura
É o seu maior tesouro
Ela vale mais que ouro
Não há nada à sua altura
Ela é a armadura
A identificação
Dessa parte da nação
Que vive sempre a sofrer
Visite pra conhecer
Uma feira no sertão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário