terça-feira, 13 de maio de 2014

Faro de cachorro (Cordel)


Outro cordel também inédito de minha autoria. Apesar de extenso vale muito a pena ler até  findá viu cunpade véi...
 
Tem coisas que incabulam
E deixa o cabra invocado
Quem pensa que já viu tudo
Não conhece o lereado
Que houve com João de Bila
E o cachorro Gobila
O bicho por ele amado

João era acostumado
Sair sempre pra caçar
Gobila acompanhava
Nunca foi de recusar
Sempre foi bem destemido
Valente e atrevido
Também bom de farejar

Gostava de observar
Tinha uma boa visão
O faro era o melhor
De toda a região
O bicho era diferente
Parecia até com gente
Do dono era irmão

Conhecia o sertão
Sabia desde pequeno
Farejar todos os bichos
Andar em qualquer terreno
Foi o maior caçador
Daqui pro Nosso Senhor
Era um animal pleno

João fazia um aceno
O bicho logo entendia
Corria para a direita
Com outro aceno descia
Escutava um assobio
Se tivesse num baixio
Em pouco tempo subia

O amor que João sentia
Era coisa de outro mundo
Você pode imaginar
Um sentimento profundo
De um cabra e um animal
Nunca houve nada igual
Nem maior e nem fecundo

Até seu José Raimundo
Compadre de João de bila
Achava aquilo bonito
O amor de joão e gobila
Sempre muito verdadeiro
Se entregava por inteiro
Nunca houve uma “quizila”

Mas tudo se aniquila
E muda sem ver de quê
Um dia estavam caçando
E João sem “sapecebê”
Uma cobra que lhe ataca
Era uma jararaca
Com certeza ia morrer

Mas gobila “pôde” ver
A bicha se aprontando
Pra desferir o seu bote
Já tava se ajeitando
Gobila logo latiu
Pra cima dela partiu
João se saiu pinotando

O bote “jaraqueano”
Acertou Gobila em cheio
João então meteu-lhe chumbo
Acertou-a bem no meio
A bicha logo morreu
E Gobila padeceu
Deixou João no aperreio

João procurou logo um meio
Para gobila salvar
Botou fumo na ferida
Depois de muito mascar
Gobila não aguentou
E João assim pensou:
Morreu para me salvar...

João então pois-se a chorar
Com Gobila abraçado
Passou ali quatro horas
Com o cachorro agarrado
Depois ele o enterrou
E Gobila ali ficou
Naquele chão enterrado

João pensou: tô acabado
Morreu meu maió amigo
um cachorro iguá gobila
Sacaba o mundo eu li digo
Qui num incontro mai um
E mermo teno argum
Já deve tá no jazigo.

Enfiou-se em seu abrigo
E ficou ali sofrendo
Com uma forte depressão
De banzo quase morrendo
Só pensava no cachorro
Precisava de socorro
Pois estava padecendo

Vendo o que tava ocorrendo
Zé Raimundo o procurou
Disse: -João tu te anima
Qui o mundo num parô
Tu tá assim faz dor mêis
Tá cum uma palidei
E isso já me tocô

A tristeza se acabô
Levanti e vamo vivê
Eu vim pra le acudi
Iscute o qui vô dizê
Vô resovê esse assunto
Poi gobila é difunto
Num quero li vê sofrê

Na fazenda zabelê
Do cumpade João de Nóca
Tem criação de cachoro
Ele compra, vende e troca
Vá Lá e iscoia um
Poi lá deve ter argum
Qui li tire dessa toca

Ele disse: -isso me toca
Cumpade eu li agradeço
Mas cachorro iguá gobila
Num tem nesse indereço
E mermo que lá tivesse
E tamém se eu quizesse
Num posso pagá o preço.

-Cumpade eu Le ofereço
Será um presente meu
Quero vê sua aligria
Poi isso me intristeceu
Saia logo dessa toca
E vá lá em João de Nóca
Quarque um de lá é seu.

João de Bila prometeu
Que ia no outro dia
Zé Raimundo se animou
E saiu com alegria
Mas também preocupado
Pois João naquele estado
Será que ele iria?

Quando foi no outro dia
João de bila se acordou
Lembrou-se do seu compadre
E ai ele pensou:
Eu vou Lá nessa fazenda
ispero num marrependa
Dessa viage qui vô.

Quando lá ele chegou
Foi muito bem recebido
Pois Nóca tava sabendo
De todo o ocorrido
Mostrou logo a bicharada
Era toda misturada
Tinha pequeno e comprido

Tinha bicho colorido
Tinha preto e tinha branco
Tinha magro e tinha gordo
Tinha bom e tinha manco
Tinha com rabo e sem rabo
Tinha manso e tinha brabo
Eu só sei que tinha franco

João sentou-se num banco
Pra “tudim” ele olhava
Mas não encontrava um
De nenhum se agradava
Mas de repente mudou
Viu um que lhe agradou
De gobila aproximava

Quando ele se levantava
Nóca então assoviou
O cachorro veio ligeiro
Aí João então pensou
Parece que esse é bom
Era branco e marrom
De gobila ele lembrou

A Nóca ele perguntou
A raça e o nome do cão
Ele disse: -é vira lata
E seu nome é tubarão
O bicho é grande e ligero
É valente e mandinguero
Parece um baibatão...

Como ele gostou então
Resolveu logo levar
Queria passar uns dias
Pra ele se acostumar
E depois entrar no mato
E saber mesmo de fato
Se ele sabia caçar

No dia de avaliar
Levantou-se logo cedo
Chamou logo tubarão
Foi em busca do lajedo
Mas teve decepção
Descobriu que em tubarão
O faro era um arremedo

Descoberto o segredo
Veio outro sofrimento
O único que ele gostou
Até aquele momento
Não prestava pra caçar
Pois ele sem farejar
Era mesmo que um jumento

Aí veio o lamento:
Um bicho bom desse jeito
Bonito, grande e valente
Qui leva tudo a eito
Parece que tô sentindo
Uma dor aqui subindo
E vindo in busca do peito.

Estava insatisfeito
E contou a Zé Raimundo
Falou de sua tristeza
Do sofrimento profundo
Raimundo disse: -eu resovo
Eu conheço um cabra novo
Que ajeita num sigundo

Va Lá no riacho fundo
Da mutamba mais pra riba
Procure um caçador
Que se chama de Furiba
E mande botá o faro
Num impotra se é caro
Eu quero vê tudim riba

Tinha ido à Paraíba
Mas já estava chegando
João de Bila resolveu
Ficar ali esperando
Mas só tinha um pensamento
Acabar com o sofrimento
Já estava maquinando

Furiba já foi chegando
Perguntou: -o que é que manda?
Ele disse: -Zé Raimundo
Disse que você comanda
Pra botá faro in bicho
Poi eu quero no capricho
Vê rodá essa ciranda.

-O sinhô aqui qui manda
Escoia o bicho que qué
Que tubarão Le fareje
Me diga o que quizé
Que o trabaio eu garanto
Só num posso dizé quanto
Pra vosmicê num dá ré

-Isso eu já falei cum Zé
e ele vai pagá tudo
 Eu quero o bicho cum faro
Poi comece o istudo
Qui daqui uma sumana
Se a vedrade num mi ingana
Eu venho aqui contudo...

-Poi eu nunca fico mudo
Pra botá faro num bicho
Mi diga quá é o faro
E dexe qui eu capricho
Iscoia o qui quizé
Vosmicê pode tê fé
Qui eu boto iguá cumicho

João pensou logo num bicho
Que não tem na região
Queria bagunçar tudo
Fazer uma confusão
Disse agora eu destrambelho
Então pediu de coelho
Pra ver ele sem ação

Mas ele disse então:
-Poi vosmicê pode ir
Vorte cum uma sumana
Qui eu vô tá bem aqui
Cum o cachorro já cum faro
Mermo seno bicho raro
Ainda vô garanti

Ficou vendo João partir
E começou o serviço
Passou-se uma semana
O prazo do compromisso
Avistou João voltando
Já vinha se aproximando
Pra saber desse feitiço

Já fez logo um reboliço
Procurando tubarão
Mas Furiba disse: -ispere
Qui eu vô chamá o cão...
E então assobiou
O bicho logo riscou
Cheirando nos pés de João

Ele se animou então
E ficou admirado
Tubarão tava cheirando
Será que tinha ganhado
A força no seu nariz
Isso lhe deixou feliz
Mas também preocupado

Será qué um arrumado
Só para mi lubriar?
Mas Furiba disse logo:
-Vosmicê pode testá
Pode entrá logo no mato
Eu tamém butei mais tato
Pra nu iscuro caçá...

João pensou: é de lascá
Será qui isso é vedrade?...
Agarrou a espingarda
Pra saber da qualidade
Do faro de tubarão
Chamou o bicho e então
Pra ver sua lealdade

Ele na velocidade
já entrou no “mei” do mato
igual uma tempestade
Que João vendo esse fato
Pensou consigo: êita gota
Mas qui corrida iscrota
Só deve de sê um gato...

E mesmo naquele ato
Tubarão então parou
Já tava meio distante
Mas não se acovardou
O bicho muito latia
E as “vez” até grunia
Que João num acreditou

Ele então se adiantou
“Frechou” o pé na carreira
O mato abria e fechava
Só se via a poeira
Quando João chegou e viu
Para trás quase caiu
No pé duma aroeira

Quando viu na capoeira
Ficou de raiva vermelho
Tubarão com um pau na boca
Chegou perto do fedelho
Puxou o pau do “madrito”
Era um pau de cruz escrito
Antonio Augusto COELHO.

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